A responsabilidade do fiscal

* Valdecir Pascoal

A cada nova crise fiscal, a cada  novo ciclo econômico recessivo no país surgem movimentos com o propósito de flexibilizar a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). O mecanismo costuma operar por duas vias: propostas legislativas que buscam restringir os seus limites, vedações e sanções, de um lado, e, de outro, tentativas de pressionar os órgãos de controle, especialmente os Tribunais de Contas (TCs), para que flexibilizem a interpretação da lei.

No campo legislativo, a Lei Complementar 164/2018 é o mais recente exemplo desse movimento. Ela deixa de proibir o repasse de convênios e a contratação de empréstimos para aqueles municípios que passarem a extrapolar os limites de pessoal em razão de queda real de 10% da receita de royalties ou do FPM, decorrente de isenções federais. Embora a nova lei atinja tão somente as chamadas “sanções institucionais” (aquelas aplicadas aos próprios municípios, e não aos gestores) e não tenha o condão de deformar a essência da LRF, por restarem preservadas todas as demais vedações, obrigatoriedade dos limites, prazos para adoção de medidas para retornar ao equilíbrio e sanções aplicáveis aos gestores pelos TCs, Judiciário e Legislativo; embora essa alteração pontual acarrete mínimos efeitos práticos, na medida em que poucos municípios poderão ser beneficiados, não deixa de ser uma sinalização negativa para a nossa ainda incipiente cultura da responsabilidade fiscal. Essa liberalidade também faz pouco caso dos gestores que, republicana e tenazmente, fizeram o “dever de casa”.  Não se despreze, outrossim, a duvidosa constitucionalidade da mudança, porquanto a Lei Maior veda expressamente o que a nova lei (menor) passou a permitir, no caso do repasse de novas transferências de convênios a municípios desequilibrados (CF, art. 169, §2º).

A rigor, se o Congresso pretendeu fazer, em votação relâmpago, um afago nos gestores municipais, além de o tiro poder sair pela culatra, considerando os poucos efeitos das inovações, desperdiçou-se uma grande oportunidade de se discutir, com profundidade e transparência, possíveis aprimoramentos nesse diploma. Um debate legislativo qualificado, inserindo sociedade, especialistas, gestão e controle, poderia enfrentar questões bem mais relevantes. As despesas de caráter indenizatório não deveriam entrar na conta do limite de pessoal? As demais despesas de custeio, como as terceirizações, não deveriam ter um limite próprio? Não seria a hora de reavaliar (recalibrar) os percentuais dos limites de pessoal, de sorte a levar em conta critérios mais técnicos na sua fixação, como o valor do orçamento, população, PIB, IDH? É razoável o município de São Paulo, com orçamento bilionário, ter o mesmo limite de pessoal de um pequeno rincão do país (60% da RCL)? Os programas federais que oneram a folha de pagamento dos municípios não deveriam, ao menos em parte, ser computados no limite de pessoal da União? Levando em conta a volatilidade de sua arrecadação, os royalties devem continuar fazendo parte da base de cálculo da receita corrente líquida? Não esquecendo, ademais, que é também no legítimo palco parlamentar que deve ser travada a discussão maior sobre o nosso federalismo fiscal, mormente a questão da efetiva autonomia financeira dos entes federados, que não pode continuar prescindindo de uma melhor e mais justa repartição das receitas públicas, notadamente para os municípios.

Como esse debate amplo não vem e a crise persiste, surge, então, as pressões sobre os Tribunais de Contas, a instância de controle que foi alçada pela própria LRF como guardião-mor da responsabilidade fiscal. A atuação desses Tribunais vem sofrendo críticas em razão de interpretações mais complacentes e flexíveis em alguns casos, o que teria contribuído para o aumento da atual crise fiscal. Esse reparo — embora injusto em determinados aspectos, posto que generaliza, ignora outras formas de atuação desses órgãos e deixa de reconhecer que muitos TCs mantiveram-se resilientes nas questões essenciais da LRF — merece a reflexão daqueles que fazemos parte do controle externo. É fundamental, e assim manda a boa hermenêutica, uma postura mais ortodoxa na interpretação da LRF, que é, por natureza, norma de caráter restritivo, sem olvidar que a sua finalidade precípua é justamente a de transformar a nossa enraizada cultura de acomodação e aversão a ajustes fiscais que impliquem diminuição da máquina. Ainda que reconheçamos a legítima autonomia interpretativa de que desfruta cada TCs, a moldura exegética impõe cautela, não se devendo ultrapassar as fronteiras das exceções já assinaladas na própria LRF, a exemplo das situações de calamidade pública e de PIB negativo.

A fim de mitigar a insegurança jurídica trazida pela discrepância na aplicação da lei e impor maior rigor interpretativo por parte do controle, revela-se fundamental a criação do Conselho de Gestão Fiscal (CGF) pelo Congresso, órgão que, com a participação de representantes da gestão e do controle de todos os Poderes e entes federativos, irá se incumbir da padronização das contas públicas nacionais. Já passou da hora, portanto, de aprovar o PLP 210/15, que tramita na Câmara dos Deputados há impensáveis 18 anos. Igualmente relevante é a aprovação de uma espécie de Câmara de Uniformização de Jurisprudência dos TCs, nos moldes previstos na PEC  22/2017, do Senado.

Decerto que as causas da crise fiscal são múltiplas, a exigir, especialmente dos gestores públicos, um novo compromisso com a responsabilidade e o equilíbrio fiscal. É mister que se faça, antes de tudo, o dever de casa: efetividade na cobrança dos impostos (municípios costumam negligenciar na arrecadação própria), parcimônia na concessão de renúncias fiscais, racionalização e planejamento eficaz do quadro de pessoal e coragem republicana para fazer cortes necessários nas despesas. Quando, em meio à grave crise fiscal,  constata-se a existência de estados e municípios equilibrados, conclui-se que a LRF, antes de ser estorvo, é vereda republicana, e não será por meio de seu enfraquecimento que avançaremos na superação da crise e na melhoria da governança pública.

Dos órgãos de controle, especialmente dos Tribunais de Contas, dos Ministérios Públicos, do Judiciário e do próprio Poder Legislativo, espera-se que assumam definitivamente o republicano papel de guardiões da LRF.

A responsabilidade fiscal começa pela responsabilidade do fiscal.

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Valdecir Pascoal é Conselheiro do TCE-PE e ex-Presidente da Atricon (Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil).

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