Leia o artigo “Maus Caminhos” do advogado Edemundo Dias de Oliveira Filho

EDEMUNDO DIAS DE OLIVEIRA FILHO

Delegado de Polícia (Aposentado). Advogado. Presidente da Comissão de Segurança Pública e Política Criminal (OAB-GO). Especialista em Políticas Públicas (UFG). Mestre em Direito Público (Universidade de Extremadura – Espanha)

Recentemente o Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao decidir um recurso em mandado de segurança envolvendo a atuação sobreposta do Tribunal de Contas da União (TCU) e do Distrito Federal (TCDF) sobre as verbas federais repassadas pela União, apresentou uma solução que reconheceu que ambos têm competência para exercer o controle dos recursos transferidos. A questão decidida envolvia prestação de serviços em UTI, contrato feito pela Secretaria de Saúde e pagos com recursos do Fundo de Saúde do Distrito Federal. O TCU considerara regular, sem ocorrência de sobrepreço e o TCDF, analisando o mesmo contrato, aferiu a ocorrência de sobrepreço.

É legítima a luta dos tribunais de contas estaduais e municipais pela preservação de suas competências. Mas até que ponto esse esforço pode redundar em danos irreparáveis ao patrimônio público? Vale o questionamento ao observar-se a ocorrência de interpretações equivocadas dos magistrados, nos tribunais regionais federais e, notadamente, na Justiça Estadual, em que os juízes, não raro, tomam decisões com base apenas nas normas do direito administrativo, o que estampa certo desconhecimento dos pressupostos constitucionais do modelo de atividade dos tribunais de contas e as peculiaridades das complexas análises no cerne do processo de contas.

Em consequência, a morosidade do judiciário e a insciência de disciplinas específicas como economia, contabilidade, princípios e técnicas de auditorias em geral, provocam, nas ações penais e civis públicas destinadas a devolver, aos cofres públicos, recursos indevidamente desviados, uma espécie de desidratação da finalidade e o prolongamento do processo, lesando, ad perpetuo, o erário, o que frustra o empenho diuturno do Ministério Público e da Polícia Judiciária pela responsabilização do agente causador do dano e restauração da ordem pública.

Por exemplo, foi exatamente no cerne da disputa de competências fiscalizatórias pelos tribunais de contas, sobre a natureza dos recursos da saúde, transferidos da União para o Estado do Amazonas, em caso que se arrasta desde 2016, que o Tribunal Regional da 1ª Região (TRF1) “decidiu” que a Justiça Federal não tinha que “decidir” um volumoso desvio de verbas envolvendo uma instituição chamada Instituto Novos Caminhos (daí o nome da Operação Maus Caminhos), no qual os agentes plantados na pasta Estadual da Saúde causaram um prejuízo, estimado pelo Ministério Público Federal, de mais de R$100 milhões. O TRF1, após um ano arrazoando o que fazer, considerou-se “incompetente”, porque o dinheiro foi transferido aos cofres estaduais e seria, portanto, verba orçamentária afeta estritamente ao Estado do Amazonas.

Nesse diapasão, pelo percurso do tempo, as evidências desaparecem, os recursos se esvaem, a impunidade vem pela prescrição e a mácula no princípio da eficiência será certa e vexatória! Não raro, processos dessa natureza se arrastam com decisões sem lastro meritório. O desfecho assombroso desse descalabro na gestão da saúde do Amazonas foi fatídico, público e notório, um verdadeiro escárnio: a população amazonense morrendo sem oxigênio e clamando pelo socorro de todo o país e do mundo… e o processo se perenizando na (in)definição da competência jurisdicional.

Na nossa história de gestão pública, egresso dos quadros da polícia estadual de Goiás e acostumado a tomar decisões difíceis no comando de órgãos críticos para a sociedade goiana, como a Diretoria Geral da Polícia Civil, a Agência Prisional e a Secretaria de Estado da Justiça, examinando e vivendo a Administração Pública por décadas, reconhecemos o valor das análises dos Tribunais de Contas e sabemos que a Polícia Federal, com a sua expertise para investigações dessa magnitude, em verbas sabidamente federais, consome tempo, sua estrutura logística e dinheiro, para dar ao MPF subsídios capazes de fazer regressar aos cofres públicos os valores desviados, que provocam a miséria e a morte de pessoas na fila do SUS. Cotidianamente, todavia, vê seus esforços reduzidos à burocracia das cortes judiciais e ao desconhecimento, pelos magistrados, da atuação do controle externo, que torna o resultado esperado pífio ou inexistente. Ou seja, por via oblíqua, nas barras da ignorância sistêmica do Judiciário sobre a atividade dos tribunais de contas, os gestores corruptos saberão que o crime vai compensar…

Esse abismo estrutural se inicia nos cursos jurídicos, cujo currículo não vê, no processo de contas, peculiaridades que lhe confiram autonomia didática. Entretanto, ele possui princípios e metodologia próprios, vai além do direito administrativo e é multidisciplinar. É urgente que se repare isso, sob pena de se conviver, por muitos anos ainda, com decisões judiciais lesivas ao patrimônio público por puro desconhecimento da dinâmica do sistema de controle externo.

Assim, preocupa-nos que até os Tribunais Superiores assumam entendimentos ambíguos que, longe de apaziguar e dar um destino aos embates, aviltam mais a disputa de espaço entre tribunais de contas, provocando efeito nefasto nas decisões judiciais adotadas em níveis regional e estadual, exatamente pelo despreparo acadêmico dos operadores de direito para lidar eficientemente – e com urgência – nos casos de desvios que demandem rapidez para restituir verbas aos cofres públicos. Decisões como essas, do STJ e do TRF1 se mostram graves porque não resolvem o problema, acirram as discussões, provocam conflitos de competência inoportunos e criam o nocivo ambiente para proliferação da má gestão e do descontrole, sobretudo nos municípios.

Neste momento gravíssimo de pandemia por que passa o País, onde explodem denúncias de malversação do recursos públicos, é imperioso que os magistrados considerem revisitar a natureza das verbas destinadas à saúde, a competência, a dinâmica e as peculiaridades do processo de contas, e o modo brilhante de estruturação, organização e descentralização do Sistema Único de Saúde, seus níveis de atuação, as instâncias de gestão e governança envolvidas (Comissões Tripartite, Bipartite, conselhos etc.), para entender que não se trata de simplesmente declarar que, se o dinheiro saiu da União e entrou no fundo estadual, a ela não mais pertence e o TCU pode descansar, fazendo com que os juízes estaduais herdem um nó górdio para o qual nem mesmo conhecem a espada que o desfará.

Preservar competências é importante. Mas, como visto em Manaus, pode redundar no esbulho criminoso dos recursos públicos e até mesmo um possível escoamento da punibilidade pela via esdrúxula da prescrição. Melhor seria o equilíbrio e o bom senso. Ora, se o TCU tem a competência para fiscalização de recursos federais, mas não tem o braço nem a expertise capilar que os tribunais estaduais e municipais possuem, conveniar o território de ação pode ser uma iniciativa prática e eficaz. Isso porque o academicismo jurídico brasileiro ainda forma juízes que não sabem o que é sistema de controle externo e nem sempre avaliam bem a diferença entre receitas orçamentárias e extraorçamentárias, ensejando maus, tortuosos e tenebrosos caminhos da impunidade.

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