Leia o artigo “Na barranca do mundo” do presidente do TCM-SP João Antonio da Silva Filho

Na barranca do mundo

 

“Sim, os tempos atuais exigem que gritemos em alto e bom som pela valorização da vida, por maior distribuição de renda, pela democratização do saber, por mais solidariedade e pelo binômio liberdade e igualdade como expressão da libertação de homens e mulheres do jugo autoritário.”

Por João Antonio da Silva Filho

Cheguei na barranca do mundo. Fotografei o abismo. Não! Não, estou falando e muito menos defendendo o terraplanismo! Apenas buscando na fantasia dos negacionistas uma alegoria para descrever o momento. Para os defensores da democracia, a vida não anda fácil: vivemos uma era onde as versões viram verdades e os fatos meras alegorias a serviço de interpretações subjetivas dos que têm pouco compromisso com a autenticidade e com a coerência.

Os ilusionistas do presente, no afã de fazerem valer suas narrativas, transformam palavras em meras emissões de sons. Sons que mais se parecem com monótonas cantilenas – traduções de pensamentos retrógrados que buscam no simplório um jeito fácil de “levar bico” os desavisados.

Assim, vão inventando argumentos para justificar sua predileção pelo inusitado.

Falo aqui das aberrações ditas em nome da liberdade, do negacionismo à ciência; dos autoritários travestidos de democratas e dos que incentivam a competição sem limites entre os indivíduos como mecanismo de desenvolvimento humano.

Para alguns hoje no poder no Brasil, de pouca leitura sobre liberalismo, o termo “liberdade” virou um mantra a ser repetido sem muito compromisso com o seu significado e muito menos com as condições em que ela se estabelece. Eles trazem uma narrativa da liberdade como valor absoluto e que hoje se encontra ameaçado pelo “comunismo” em ascensão. Quanto devaneios!

Não, pessoal, a vida em sociedade é mais complexa!

Como escreveram alguns sábios, “o homem é um ser gregário por natureza – nasceu para viver em comunidade”. Esta constatação vem de longe. Aristoteles, 350 Anos a.C, já escreveu sobre a sociabilidade humana. Portanto, a liberdade não é uma palavra vazia do tipo “direito de ir e vir”, dissociada das relações intersubjetivas. Pelo contrário, a liberdade pressupõe o reconhecimento das diferenças e se consolida no real equilíbrio das relações entre indivíduos ou grupos de indivíduos com todas suas idiossincrasias. Daí decorre o valor da democracia. Exatamente por não buscar sua legitimação na conformação geral de opinião (no consenso) é que a democracia se faz necessária para a pluralidade. Aliás, a democracia é o único mecanismo de composição das diferenças. É nela que se ancora a forma pactuada dos limites da nossa liberdade.

Em outros termos: a possibilidade de decidir, escolher em função da própria vontade, isenta de qualquer condicionamento (livre-arbítrio), é uma mera fantasia e chega a ser autoritária. Se levada às últimas consequências, é o caminho da “guerra de todos contra todos” – para citar Thomas Hobbes. Liberdade e harmonia social são faces de uma mesma moeda: estão inseridas em um contexto de complexas relações de interesses cuja composição é o único caminho para um equilíbrio estável entre indivíduos/indivíduos, indivíduos/coletividade.

Mas atravessamos um período histórico de muitas confusões. Confusão aqui vem nas várias acepções do termo: ato ou efeito de confundir(-se); estado em que se encontra misturado; equívoco, tomar uma coisa por outra; conflito, discórdia – desentendimento e desarrumação; falta de clareza das ideias… enfim, a desarmonia campeia sem limites.

Talvez essa seja a resultante do tipo de mundo projetado para fazer da competição o mecanismo principal para medir o valor entre as pessoas. Aliás, essa é a lógica do ultraliberalismo, que encontra no formalismo sem limites a modelagem dos indivíduos e sua relação com o todo social. São da lavra dos ultraliberais a igualdade formal, ou igualdade do ponto de partida, a seleção natural dos melhores (meritocracia) e a competitividade como meio de impulsionar a construção de riquezas, relativizando a solidariedade como força motriz na construção de uma sociedade mais humana e fraterna, confundindo o termo liberdade com livre iniciativa. Ou seja, o direito de acumular riquezas sem limites, pouco se preocupando com a distribuição mais equitativa das riquezas produzidas pelo esforço coletivo.

Talvez esteja aí a explicação para a corrente banalização da vida humana: quando vemos uma criança descalça pedindo no farol; uma família em uma esquina morando embaixo de uma carroça com uma placa escrita “aceitamos ajuda”; milhares de pessoas morando embaixo de barracas e ou viadutos. Milhares de famílias na fila para pegar ossos ou restos de comida no lixo passam a fazer parte da paisagem urbana sem que sejam motivo de indignação coletiva é sinal da completa deterioração das relações humanas.

Sim, os tempos atuais exigem que gritemos em alto e bom som pela valorização da vida, por maior distribuição de renda, pela democratização do saber, por mais solidariedade e pelo binômio liberdade e igualdade como expressão da libertação de homens e mulheres do jugo autoritário.

Do contrário, continuaremos sem olhar para cima, nem para os lados e muito menos para frente. Seguimos olhando apenas para nossos celulares à procura de mais curtidas e na ilusão de que o ato de cancelar os indivíduos indesejáveis nos traga um sono tranquilo.

Que em 2022 encontremos o caminho da normalidade.

João Antonio da Silva Filhomestre em Filosofia do Direito pela PUC/SP, Presidente do Tribunal de Contas do Município de São Paulo.

Publicado originalmente no jornal FOLHA DE SÃO PAULO.

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